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empre nos surpreendemos quando nos deparamos com alguma coisa
que nos faz lembrar outra. Quer dizer, quando lemos um poema, um romance,
quando assistimos a um filme, ou vemos um quadro, que trazem claros vestígios de
um outro anterior, temos a sensação de que há ali mais do que um poema ou
romance, mais do que um quadro ou um filme: há um propósito reflexivo sobre o
papel da arte e do estatuto criador do artista .
Foi isso o que fez o artista pernambucano Perron Ramos quando, numa série de
cinquenta telas em que ele revisita os clássicos, não deixou de fora ela, a Mona Lisa, ou La Gioconda, de Leonardo Da Vinci.
A Mona Lisa de Perron agora faz parte desta imensa galeria crítica de reinscrição intertextual de uma tela clássica. Nordestina e solar com seus adereços de vaqueira, trazendo os vestígios da Mona Lisa do mestre do Renascimento italiano, o artista retoma a história reconstruindo o universo da arte. Entre o original e esta mais nova versão, existe um intervalo de 500 anos de história e de transformação do estatuto da arte, do artista, da história, do mercado da arte.
A Mona Lisa se mantém aqui sorrindo enigmaticamente, desafiando artistas e pessoas de todos os tempos a entrarem no seu fascínio.
Mas o artista nunca copia, ele estiliza, se apropria da
inspiração do outro, rebate, dialoga com ele repercutindo a tradição. Um
artista cria, um escritor escreve, porque muitos outros o fizeram antes dele. É assim
desde os mais remotos tempos. Mesmo Homero, quando versejou A Ilíada e A Odisseia, retomou uma história que se perpetuava nas tradições
orais, dando conta da mítica história do povo grego. Estas epopeias foram (e ainda estão sendo) retomadas constantemente por poetas e ficcionistas desde quando apareceu há
cerca de dois mil e seiscentos anos, num incessante jogo de interpelações dialógicas.
Os professores de português encarregados que são de ensinar
seus alunos a apreciarem e a interpretarem textos e demais objetos artísticos,
estudam o fenômeno intertextual para enriquecerem suas aulas. Hoje em dia, 10
entre 10 livros didáticos de português se dedicam a dissecar o fenômeno intertextual como
resposta a esse desafio. Diz a teoria: um texto é sempre absorção de outro
texto. Só atribuímos sentido a uma paródia, ou seja, só compreendemos plenamente
uma paródia se conhecermos antes o texto que é parodiado.
A intertextualidade foi difundida no mundo acadêmico na
França nos anos 1960, e cá chegou quase que imediatamente. A teoria explicava
os processos de assimilação de uma obra em outra e apareceu em boa hora, porque
com ela se procurava explicar a avalanche intertextualizante que havia tomado
conta dos processos criativos desde as vanguardas do início do século XX até os
nossos dias.
Todo autor, eu diria, tem uma obra inacabada, que remete à
outra, que discute suas estratégias de produção. Um dos conteúdos da arte é o de sua própria história se
fazendo. O artista discute os rumos da arte como conteúdo inspirador, procurando
dessa forma um pertencimento ao campo da criação.
Seria o caso de perguntar: Por que os artistas sempre se
sentirão tocados e mexidos por esta doce e enigmática moça de sorriso contido
desafiando todos ao seu mistério? O fato é que esta não é a primeira nem a última vez que um artista mexe com ela.
Publicado originalmente em 8/7/2016 na Folha da Manhã, de Campos dos Goytacazes/RJ

Esta Mona está bem na gravura e na reflexão !
ResponderExcluirConcordo, querido Ocinei! E, de fato, a reflexão de Sérgio me remeteu a Bakhtin, a Néstor García Canclini, com o seu "Culturas Híbridas", e a tantas abordagens libertadoras, que nos possibilitam continuar - sem a menor pretensão e com toda a pretensão do mundo - os clássicos, já que eles só se fizeram clássicos por causa de "vossa (nossa) excelência" os fruidores. Penso que é isso que Sérgio (nos) faz com sua crônicas (como em suas aulas), que se apropriam, esmiúçam, fagocitam e reoferecem conteúdos e visões aos quais talvez não teríamos acesso. Abraço aos dois!
ResponderExcluirO mundo parece já ter sido criado em todas as suas dimensões. Resta-nos interpelá-los criticamente até nos darmos conta de que o compreendemos.
ResponderExcluirO mundo parece já ter sido criado em todas as suas dimensões. Resta-nos interpelá-los criticamente até nos darmos conta de que o compreendemos.
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