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eio trôpego, o ano vai chegando ao meio. Ainda bem que junho
é uma beleza de mês – o que mais merece uma ode, um poema, um recital.
Talvez uma epopeia – mas não.
A epopeia é muito tempestuosa, cheia de sobressaltos, exige
muito esforço e luta, confrontos entre homens e entre esses e os deuses – e os
deuses não são nem um pouco pacientes nem complacentes com os luxos humanos,
ainda mais em dias curtos e amenos.
Talvez mereça uma tragédia. Mas, nem pensar – também não vai
bem com o mês de junho. O drama trágico é muito cerebral, argumentado
excessivamente, processual, insinuante, cheio de ardis semânticos na busca das
razões civis dos homens.
Não. Nem sentidos épicos nem trágicos para o mês de junho. É
melhor deixá-lo com a suavidade da lírica, com a cadência dos metros e com a
sonoridade das rimas.
Não foi a toa que Júpiter escolheu Juno como esposa – o que
acabou lhe rendendo uma vaga honrosa na eternidade mítica de Cronos.
Em tempos idos, quando não chovia muito nem pouco, era em junho
que nos demorávamos mais dentro de casa. Desde a manhãzinha na cama mais um
pouco, à mesa do café mais demoradamente até à tardinha à janela apreciando a
chuva mansa, os vidros embaçados, o entardecer caindo mais cedo, as pessoas lá
fora, encorujadas num canto, esperando o tempo passar, ficávamos mais livre
para nos ocuparmos de nós mesmos. E ninguém esperava o verão, e cultuavam o
silêncio e a falta de pressa dos dias curtos.
O silêncio da noite é ainda mais assombroso e revelador. É
quando a chuva fina tamborila nas calhas e depois cai delas em pequenas cataratas
no chão – sonoras embalando o sono. É o tempo pra pensar e sonhar,
misturando-se só porque é junho.
Em noites de insônia, é a orquestra dos sapos coaxando nos
alagados, dando a impressão de que estão longe, mas que estão perto, envolvendo-nos
na natureza da música, fazendo real o sonho. É só nas longas noites de junho é
que comungamos mais de perto a natureza.
As fogueiras para São Pedro, e antes delas as de São João e
Santo Antônio, longamente esperadas, eram só preocupação porque não podiam vir
com chuva.
“Por favor, meu santo, faça com que não chova. Quero soltar
os meus fogos ao pé da fogueira!”.
E não é que, por alguma força estranha, acabava não chovendo
nas noites de festas? Mas, à menor ameaça, nós as cobríamos com plásticos
pretos para que a lenha mantida seca cumprisse seu destino de fogo.
O esforço valia a pena, e assim que as chamas cobriam o
negrume da noite sem energia elétrica e sem lua no céu quase que permanentemente
nublado, o tempo parado começava a andar, com as toras se consumindo. Uma
façanha era apanhar os gravetos acesos de brasa nas pontas para inscrevermos no
ar escuro arabescos de luz e também escrevermos “Viva São João!”.
Que espanto: os foguinhos de artifícios tinham pólvora dentro
do papel que a embrulhava: um mistério como explodiam! Acendíamos a partir de
uma vela e tínhamos que ter muito cuidado para não explodir nas mãos. Os
menores acendiam inofensivos pés-de-galinha e estouravam no chão os
traques-de-sala. Os maiores reclamavam bombinhas, e tinham que soltá-las longe
para não assustarem os mais velhos. Jogávamos também as bombas dentro da
fogueira, e o estouro a fazia desabar um pouco. Que alegria!
É por essas e tantas que junho não é apenas um mês, mas a morada
dos santos: Pedro, a pedra; João a inscrição; e Antônio a permanência na fé e
no sacrifício. Ainda temos São Luiz Gonzaga e São Paulo acolhidos em junho, mas
esses fazem pouco caso de festas e se mantêm dormindo. Meus tios se chamaram
Pedro, João e Antônio, mais José, e hoje, receio que os meninos se chamem
Maicon, Anderson, Jonatas. Outros tempos, outras tradições.
Suspeito que foi numa madrugada de junho que vi pela primeira
vez a estrela da manhã, que também é a da tarde, apontada no céu já claro pela
minha tia Letícia – e eu, ainda muito pequeno, tive minha primeira lição de
astronomia. Mais tarde, concluí que foi aquela mesma que inspirou Bandeira a
compor a sua estrela: “Vi uma estrela tão alta, vi uma estrela tão fria, vi uma
estrela luzindo, na minha vida vazia”. O poeta reclamava da distância e da
frieza da estrela, e que ela não baixava para lhe fazer companhia e dar-lhe uma
esperança mais triste ao fim do seu dia. Estava lá no livro de português o
poema sobre a estrela, e eu nem me perguntei sobre a causa de uma vida vazia. É
que a minha era plena de esperança e de quase felicidade.
Junho é o mês mais colorido de todos e o mais galantemente
doce – eu que não me esbaldo em açúcar. Talvez seja assim porque chegue em
sucessão a maio. As safras generosas do milho são abundantes e foram gestadas
entre José e Pedro, passando por Antônio e João.
Chovia em junho e nos deslumbrávamos. Informávamos cheios de
notícias: “Está chovendo!”. “Está no tempo delas”, respondiam os mais velhos.
A vontade é que junho se demore um pouco mais.
(Publicado n'A Folha da Manhã, de Campos dos Goytacazes/RJ, em 3/6/16.
Que delícia!!!
ResponderExcluirReflexão profunda e despretensiosa, como a prosa de Rubem Braga, que descama a opacidade do cotidiano e enlaça o leitor, embalando-o pelos caminhos sensíveis da memória.
C'est super!
Nossa, Rubem Braga é o ideal da crônica.
ExcluirFoi um belo mês de junho e é um belo texto lido em julho ou em qualquer tempo e ano...
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