segunda-feira, 4 de julho de 2016

Meio do ano



M
eio trôpego, o ano vai chegando ao meio. Ainda bem que junho é uma beleza de mês – o que mais merece uma ode, um poema, um recital.
Talvez uma epopeia – mas não.
A epopeia é muito tempestuosa, cheia de sobressaltos, exige muito esforço e luta, confrontos entre homens e entre esses e os deuses – e os deuses não são nem um pouco pacientes nem complacentes com os luxos humanos, ainda mais em dias curtos e amenos.
Talvez mereça uma tragédia. Mas, nem pensar – também não vai bem com o mês de junho. O drama trágico é muito cerebral, argumentado excessivamente, processual, insinuante, cheio de ardis semânticos na busca das razões civis dos homens.
Não. Nem sentidos épicos nem trágicos para o mês de junho. É melhor deixá-lo com a suavidade da lírica, com a cadência dos metros e com a sonoridade das rimas.
Não foi a toa que Júpiter escolheu Juno como esposa – o que acabou lhe rendendo uma vaga honrosa na eternidade mítica de Cronos.
Em tempos idos, quando não chovia muito nem pouco, era em junho que nos demorávamos mais dentro de casa. Desde a manhãzinha na cama mais um pouco, à mesa do café mais demoradamente até à tardinha à janela apreciando a chuva mansa, os vidros embaçados, o entardecer caindo mais cedo, as pessoas lá fora, encorujadas num canto, esperando o tempo passar, ficávamos mais livre para nos ocuparmos de nós mesmos. E ninguém esperava o verão, e cultuavam o silêncio e a falta de pressa dos dias curtos.
O silêncio da noite é ainda mais assombroso e revelador. É quando a chuva fina tamborila nas calhas e depois cai delas em pequenas cataratas no chão – sonoras embalando o sono. É o tempo pra pensar e sonhar, misturando-se só porque é junho.
Em noites de insônia, é a orquestra dos sapos coaxando nos alagados, dando a impressão de que estão longe, mas que estão perto, envolvendo-nos na natureza da música, fazendo real o sonho. É só nas longas noites de junho é que comungamos mais de perto a natureza.
As fogueiras para São Pedro, e antes delas as de São João e Santo Antônio, longamente esperadas, eram só preocupação porque não podiam vir com chuva.
“Por favor, meu santo, faça com que não chova. Quero soltar os meus fogos ao pé da fogueira!”.
E não é que, por alguma força estranha, acabava não chovendo nas noites de festas? Mas, à menor ameaça, nós as cobríamos com plásticos pretos para que a lenha mantida seca cumprisse seu destino de fogo.
O esforço valia a pena, e assim que as chamas cobriam o negrume da noite sem energia elétrica e sem lua no céu quase que permanentemente nublado, o tempo parado começava a andar, com as toras se consumindo. Uma façanha era apanhar os gravetos acesos de brasa nas pontas para inscrevermos no ar escuro arabescos de luz e também escrevermos “Viva São João!”.
Que espanto: os foguinhos de artifícios tinham pólvora dentro do papel que a embrulhava: um mistério como explodiam! Acendíamos a partir de uma vela e tínhamos que ter muito cuidado para não explodir nas mãos. Os menores acendiam inofensivos pés-de-galinha e estouravam no chão os traques-de-sala. Os maiores reclamavam bombinhas, e tinham que soltá-las longe para não assustarem os mais velhos. Jogávamos também as bombas dentro da fogueira, e o estouro a fazia desabar um pouco. Que alegria!
É por essas e tantas que junho não é apenas um mês, mas a morada dos santos: Pedro, a pedra; João a inscrição; e Antônio a permanência na fé e no sacrifício. Ainda temos São Luiz Gonzaga e São Paulo acolhidos em junho, mas esses fazem pouco caso de festas e se mantêm dormindo. Meus tios se chamaram Pedro, João e Antônio, mais José, e hoje, receio que os meninos se chamem Maicon, Anderson, Jonatas. Outros tempos, outras tradições.
Suspeito que foi numa madrugada de junho que vi pela primeira vez a estrela da manhã, que também é a da tarde, apontada no céu já claro pela minha tia Letícia – e eu, ainda muito pequeno, tive minha primeira lição de astronomia. Mais tarde, concluí que foi aquela mesma que inspirou Bandeira a compor a sua estrela: “Vi uma estrela tão alta, vi uma estrela tão fria, vi uma estrela luzindo, na minha vida vazia”. O poeta reclamava da distância e da frieza da estrela, e que ela não baixava para lhe fazer companhia e dar-lhe uma esperança mais triste ao fim do seu dia. Estava lá no livro de português o poema sobre a estrela, e eu nem me perguntei sobre a causa de uma vida vazia. É que a minha era plena de esperança e de quase felicidade.
Junho é o mês mais colorido de todos e o mais galantemente doce – eu que não me esbaldo em açúcar. Talvez seja assim porque chegue em sucessão a maio. As safras generosas do milho são abundantes e foram gestadas entre José e Pedro, passando por Antônio e João.
Chovia em junho e nos deslumbrávamos. Informávamos cheios de notícias: “Está chovendo!”. “Está no tempo delas”, respondiam os mais velhos.

A vontade é que junho se demore um pouco mais.
(Publicado n'A Folha da Manhã, de Campos dos Goytacazes/RJ, em 3/6/16.

3 comentários:

  1. Que delícia!!!
    Reflexão profunda e despretensiosa, como a prosa de Rubem Braga, que descama a opacidade do cotidiano e enlaça o leitor, embalando-o pelos caminhos sensíveis da memória.
    C'est super!

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  2. Foi um belo mês de junho e é um belo texto lido em julho ou em qualquer tempo e ano...

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