quarta-feira, 13 de julho de 2016

Todos mexem com ela


S
empre nos surpreendemos quando nos deparamos com alguma coisa que nos faz lembrar outra. Quer dizer, quando lemos um poema, um romance, quando assistimos a um filme, ou vemos um quadro, que trazem claros vestígios de um outro anterior, temos a sensação de que há ali mais do que um poema ou romance, mais do que um quadro ou um filme: há um propósito reflexivo sobre o papel da arte e do estatuto criador do artista .
Foi isso o que fez o artista pernambucano Perron Ramos quando, numa série de cinquenta telas em que ele revisita os clássicos, não deixou de fora ela, a Mona Lisa, ou La Gioconda, de Leonardo Da Vinci. 
A Mona Lisa de Perron agora faz parte desta imensa galeria crítica de reinscrição intertextual de uma tela clássica. Nordestina e solar com seus adereços de vaqueira, trazendo os vestígios da Mona Lisa do mestre do Renascimento italiano, o artista retoma a história reconstruindo o universo da arte. Entre o original e esta mais nova versão, existe um intervalo de 500 anos de história e de transformação do estatuto da arte, do artista, da história, do mercado da arte. 
A Mona Lisa se mantém aqui sorrindo enigmaticamente, desafiando artistas e pessoas de todos os tempos a entrarem no seu fascínio.
Mas o artista nunca copia, ele estiliza, se apropria da inspiração do outro, rebate, dialoga com ele repercutindo a tradição. Um artista cria, um escritor escreve, porque muitos outros o fizeram antes dele. É assim desde os mais remotos tempos. Mesmo Homero, quando versejou A Ilíada e A Odisseia, retomou uma história que se perpetuava nas tradições orais, dando conta da mítica história do povo grego. Estas epopeias foram (e ainda estão sendo) retomadas constantemente por poetas e ficcionistas desde quando apareceu há cerca de dois mil e seiscentos anos, num incessante jogo de interpelações dialógicas.
Os professores de português encarregados que são de ensinar seus alunos a apreciarem e a interpretarem textos e demais objetos artísticos, estudam o fenômeno intertextual para enriquecerem suas aulas. Hoje em dia, 10 entre 10 livros didáticos de português se dedicam a dissecar o fenômeno intertextual como resposta a esse desafio. Diz a teoria: um texto é sempre absorção de outro texto. Só atribuímos sentido a uma paródia, ou seja, só compreendemos plenamente uma paródia se conhecermos antes o texto que é parodiado.
A intertextualidade foi difundida no mundo acadêmico na França nos anos 1960, e cá chegou quase que imediatamente. A teoria explicava os processos de assimilação de uma obra em outra e apareceu em boa hora, porque com ela se procurava explicar a avalanche intertextualizante que havia tomado conta dos processos criativos desde as vanguardas do início do século XX até os nossos dias.
Todo autor, eu diria, tem uma obra inacabada, que remete à outra, que discute suas estratégias de produção. Um dos conteúdos da arte é o de sua própria história se fazendo. O artista discute os rumos da arte como conteúdo inspirador, procurando dessa forma um pertencimento ao campo da criação.
Seria o caso de perguntar: Por que os artistas sempre se sentirão tocados e mexidos por esta doce e enigmática moça de sorriso contido desafiando todos ao seu mistério? O fato é que esta não é a primeira nem a última vez que um artista mexe com ela.
                                             Publicado originalmente em 8/7/2016 na Folha da Manhã, de Campos dos Goytacazes/RJ



segunda-feira, 4 de julho de 2016

Meio do ano



M
eio trôpego, o ano vai chegando ao meio. Ainda bem que junho é uma beleza de mês – o que mais merece uma ode, um poema, um recital.
Talvez uma epopeia – mas não.
A epopeia é muito tempestuosa, cheia de sobressaltos, exige muito esforço e luta, confrontos entre homens e entre esses e os deuses – e os deuses não são nem um pouco pacientes nem complacentes com os luxos humanos, ainda mais em dias curtos e amenos.
Talvez mereça uma tragédia. Mas, nem pensar – também não vai bem com o mês de junho. O drama trágico é muito cerebral, argumentado excessivamente, processual, insinuante, cheio de ardis semânticos na busca das razões civis dos homens.
Não. Nem sentidos épicos nem trágicos para o mês de junho. É melhor deixá-lo com a suavidade da lírica, com a cadência dos metros e com a sonoridade das rimas.
Não foi a toa que Júpiter escolheu Juno como esposa – o que acabou lhe rendendo uma vaga honrosa na eternidade mítica de Cronos.
Em tempos idos, quando não chovia muito nem pouco, era em junho que nos demorávamos mais dentro de casa. Desde a manhãzinha na cama mais um pouco, à mesa do café mais demoradamente até à tardinha à janela apreciando a chuva mansa, os vidros embaçados, o entardecer caindo mais cedo, as pessoas lá fora, encorujadas num canto, esperando o tempo passar, ficávamos mais livre para nos ocuparmos de nós mesmos. E ninguém esperava o verão, e cultuavam o silêncio e a falta de pressa dos dias curtos.
O silêncio da noite é ainda mais assombroso e revelador. É quando a chuva fina tamborila nas calhas e depois cai delas em pequenas cataratas no chão – sonoras embalando o sono. É o tempo pra pensar e sonhar, misturando-se só porque é junho.
Em noites de insônia, é a orquestra dos sapos coaxando nos alagados, dando a impressão de que estão longe, mas que estão perto, envolvendo-nos na natureza da música, fazendo real o sonho. É só nas longas noites de junho é que comungamos mais de perto a natureza.
As fogueiras para São Pedro, e antes delas as de São João e Santo Antônio, longamente esperadas, eram só preocupação porque não podiam vir com chuva.
“Por favor, meu santo, faça com que não chova. Quero soltar os meus fogos ao pé da fogueira!”.
E não é que, por alguma força estranha, acabava não chovendo nas noites de festas? Mas, à menor ameaça, nós as cobríamos com plásticos pretos para que a lenha mantida seca cumprisse seu destino de fogo.
O esforço valia a pena, e assim que as chamas cobriam o negrume da noite sem energia elétrica e sem lua no céu quase que permanentemente nublado, o tempo parado começava a andar, com as toras se consumindo. Uma façanha era apanhar os gravetos acesos de brasa nas pontas para inscrevermos no ar escuro arabescos de luz e também escrevermos “Viva São João!”.
Que espanto: os foguinhos de artifícios tinham pólvora dentro do papel que a embrulhava: um mistério como explodiam! Acendíamos a partir de uma vela e tínhamos que ter muito cuidado para não explodir nas mãos. Os menores acendiam inofensivos pés-de-galinha e estouravam no chão os traques-de-sala. Os maiores reclamavam bombinhas, e tinham que soltá-las longe para não assustarem os mais velhos. Jogávamos também as bombas dentro da fogueira, e o estouro a fazia desabar um pouco. Que alegria!
É por essas e tantas que junho não é apenas um mês, mas a morada dos santos: Pedro, a pedra; João a inscrição; e Antônio a permanência na fé e no sacrifício. Ainda temos São Luiz Gonzaga e São Paulo acolhidos em junho, mas esses fazem pouco caso de festas e se mantêm dormindo. Meus tios se chamaram Pedro, João e Antônio, mais José, e hoje, receio que os meninos se chamem Maicon, Anderson, Jonatas. Outros tempos, outras tradições.
Suspeito que foi numa madrugada de junho que vi pela primeira vez a estrela da manhã, que também é a da tarde, apontada no céu já claro pela minha tia Letícia – e eu, ainda muito pequeno, tive minha primeira lição de astronomia. Mais tarde, concluí que foi aquela mesma que inspirou Bandeira a compor a sua estrela: “Vi uma estrela tão alta, vi uma estrela tão fria, vi uma estrela luzindo, na minha vida vazia”. O poeta reclamava da distância e da frieza da estrela, e que ela não baixava para lhe fazer companhia e dar-lhe uma esperança mais triste ao fim do seu dia. Estava lá no livro de português o poema sobre a estrela, e eu nem me perguntei sobre a causa de uma vida vazia. É que a minha era plena de esperança e de quase felicidade.
Junho é o mês mais colorido de todos e o mais galantemente doce – eu que não me esbaldo em açúcar. Talvez seja assim porque chegue em sucessão a maio. As safras generosas do milho são abundantes e foram gestadas entre José e Pedro, passando por Antônio e João.
Chovia em junho e nos deslumbrávamos. Informávamos cheios de notícias: “Está chovendo!”. “Está no tempo delas”, respondiam os mais velhos.

A vontade é que junho se demore um pouco mais.
(Publicado n'A Folha da Manhã, de Campos dos Goytacazes/RJ, em 3/6/16.

Crônicas Infringentes



Há quatro anos, tenho me dedicado ao exercício da escrita em jornal diário. A experiência é das melhores, já que o exercício de escrever é dos mais gratificantes que posso conceber, aliado que é da própria leitura. Escrevemos porque lemos. 
Todas as semanas durante todo esse tempo, venho me dedicando a buscar uma ideia, dar-lhe contornos, amadurecê-la, pesquisá-la em arquivos pessoais e digitais, nos livros, no noticiário e na imprensa – mas fundamentalmente na minha memória – fatos, episódios, lembranças, intuições, desconfianças que pudessem figurar como uma crônica, um artigo, uma resenha, um editorial, uma crítica, mas fundamentalmente uma crônica, gênero pelo qual tenho a mais alta estima no mundo das letras. Como nunca conseguimos nos organizar no caminho que escolhemos, considero essas crônicas um tanto degeneradas (sem gênero), buscando textualidade e discursividade em diversos expedientes e estratégias. O resultado tem sido algo que resolvi chamar de Crônicas Intransigentes. Com esse título, queria corresponder à dimensão de vozes e pontos de vista que cercam um problema, tentando envolver todos num só abraço textual.
Assim, têm sido semanas e mais semanas dedicando-me ao ofício da escrita, tentando estabelecer um texto que fosse uma crônica, uma resenha, um artigo, uma confissão, qualquer forma textual que pudesse servir de exercício da escrita em temas tão variados.
Esses temas vão do cinema à literatura, da poesia ao teatro, do fato observável à noção vaga dele, de escritores a cineastas com seus livros e filmes, reclamando, pelo menos de mim mesmo, uma palavra, um olhar, um parecer, tudo movido pelo entusiasmo de pertencer à grande confraria formada por aqueles que se dedicam ao ofício de veicular a palavra – a palavra quentinha – desde cedo nas bancas, “postada” num canto de página impressa esperando aflito o seu leitor – poucos – tão cativos e sinceros.
Eis que agora esta palavra procura um outro canto para se instalar, no inominável ciberespaço!
Nas postagens que se seguirão, o olhar enviesado, às vezes crítico, às vezes demasiado ingênuo, sobre temas tão eloquentes, mas premidos e espremidos nas 60 linhas de um ilimitado desconforto de síntese.
As crônicas infringentes saíram do meu cotidiano de observador distraído, professor e leitor quase voraz do que me cai às mãos. É o olhar de quem confia na palavra como veículo de esclarecimento e concórdia, mas, sobretudo, de alerta às coisas do mundo.
Boa leitura a todos e todas.